Ação de captura, esterilização e devolução na cidade de Jundiaí é interrompida por conta de uma invasão de gambás.
Era para ser mais uma atividade de rotina dentro da semana de trabalho. Tudo foi muito bem planejado e preparado. A chegada com antecedência ao local para monitorar o jejum da colônia e impedir que protetoras sem o prévio aviso sobre a ação dessem de comer para os gatos. Antecedência também para dar a devida manutenção nas armadilhas e resolver assuntos burocráticos com o pessoal da empresa “dona” da colônia. Tudo certinho, tudo tranquilo, só que não!
Assim que o dia levantou para a noite se sentar sobre o céu jundiaiense, os Didelphis auritas, também conhecidos como gambás-de-orelhas-pretas, também chamados de saruês, literalmente atacaram as armadilhas, não dando a menor chance para que qualquer gato doméstico de vida livre (Felis catus), castrado ou não, fizesse parte do processo do método CED e entrasse na estatística de controle da empresa e do DEBEA (Departamento de Bem-estar Animal).
Do começo da noite ao início da madrugada, dez saruês foram capturados pelas armadilhas automáticas da Fermarame. O som do fechamento da armadilha com o décimo gambá dentro, decretou o fim precoce da ação. O detalhe curioso é que muito provavelmente os mesmos bichos se revezaram para frustrar a ação de CED. Não haviam 10 gambás, talvez quatro ou cinco, e esses causaram o estrago entrando mais de uma vez cada um nas armadilhas.
Assim que amanheceu fui atrás de saber o que aconteceu. Nunca antes na história desse técnico em gestão ambiental isso havia acontecido. Liguei para o professor Rafael Mana, biólogo chefe do Núcleo da Floresta, o famoso CRAS (Centro de Reabilitação de Animais Silvestres) sediado em São Roque, Interior paulista.
Eu não chamei o Rafael de professor sem motivo. A aula foi dada e vou tentar registrá-la nesse post do Faunauê. Vamos aos fatores que explicam o alvoroço perpetrado pelos saruês na noite e madrugada da ação de controle de gatos, segundo o professor Rafael Mana. Um dos fatores é de caráter não controlável e dois são antrópicos, ou seja, são efeitos da ação humana. Não coloco aspas porque faço observações ao longo dos parágrafos e o biólogo, conhecedor do meu trabalho, apontou situações em que eu estou, obviamente, envolvido.
O vázio do outono. Considerado um período de transição entre o verão e o inverno, essa estação se caracteriza pelo início da escassez de alimento na natureza. Toda a flora se recolhe e o que era abundante para a fauna, passa a não ser. Naturalmente os bichos ficam mais famintos e isso explica em parte a voracidade dos gambás.
O mato sem cachorro. Recentemente no local onde a colônia de gatos faz sua área de vida, capturei um cachorro do mato (Cerdocion thous) que estava doente e o direcionei para tratamento no Núcleo da Floresta. Depois de 12 dias o bicho maravilhoso estava zerado de qualquer problema de saúde e foi devolvido para a empresa, que está situada no meio de um fragmento de Mata Atlântica na cidade de Jundiaí, 70 km da Capital paulista.
Uma semana depois uma alegria incrível fez meu coração disparar. O cachorro do mato apareceu junto de outro da sua espécie, o que me levou a crer que era um ritual de acasalamento. Alguns dias depois essa alegria foi para o saco pois uma matilha de cães domésticos (Canis lupus familiaris) começou a circular no fragmento de Mata Atlântica e passou atacar os cachorros silvestres.
Enorme e profunda decepção, pois além de observar os cachorros do mato sumirem, não fui capaz de reunir forças para resolver o problema, não consegui sensibilizar a empresa e nem o poder público sobre a necessidade de capturar e destinar corretamente os cães domésticos. O caso corre em aberto e alguns incidentes ocorreram, como o ataque dos cães domésticos a uma paca que teve seus olhos arrancados pela matilha. A saúde humana também corre risco e o presente texto serve também para registrar a situação.
No Brasil a relação domésticos e silvestres é quase que totalmente negligenciada pelas autoridades públicas e pela sociedade civil.
Voltando ao caso específico dos cachorros do mato “espantados” pela matilha de cachorros domésticos, a ausência dos cães selvagens faz com que a população de saruês cresça de maneira desproporcional a oferta de alimentos da natureza, tornando a competição por comida muito acirrada dentro das relações da espécie. E por que? Porque o cachorro do mato é o predador natural do gambá-de-orelha-preta.
O controle de escorpiões. Não há detalhe que não seja sensível dentro desse assunto. Fato é que a contratação de um prestador de serviços que controla pragas afeta negativamente a vida dos saruês, pois seu prato preferido morre envenenado e ele fica com fome. Ainda que o veneno seja aplicado nas áreas internas da empresa, o alcance e propagação dos princípios ativos podem se estender às demais áreas, inclusive porque indivíduos diretamente afetados pelo veneno podem se locomover antes de morrer e interagir com o meio ambiente. E como lembrou bem o Rafael Mana, não é só o escorpião que sofre o impacto, todos os invertebrados são atingidos pelo trabalho da dedetizadora.
É uma situação que pode ser definida pela frase popular “sinuca de bico”. Deixar as áreas internas da empresa expostas a escorpiões e outras espécies que podem colocar a saúde humana em perigo, inclusive com risco de morte, é correto? Se lembrarmos que o saruê faz o controle biológico de escorpiões podemos garantir que esse processo de controle natural será eficiente para defender a vida humana? É algo difícil e que, infelizmente, ainda não estudamos a fundo e não conseguimos privilegiar o processo natural, que seria permitir o acesso do saruê às áreas internas da empresa.
Esses três fatores de impacto elencados pelo biólogo Rafael Mana, mudança de estação, ausência do predador natural do saruê e a aplicação de veneno para controle de pragas, explicam o fenômeno ocorrido durante a ação de controle de gatos na empresa em Jundiaí. Mais do que isso, esses são exemplos que permitem entender a situação de degradação que o meio ambiente se encontra, especialmente a Mata Atlântica, onde se deram todos os fatos descritos nesse texto.
Eduardo Pedroso para Faunauê