Dras. Rita de Cássia Maria Garcia, Rosangela Ribeiro e Carolina Trochmann Cordeiro
Artigo publicado na Revista Clínica Veterinária nº 130.
Os gatos errantes podem ser abandonados ou terem um tutor. Os abandonados podem formar colônias em ambientes onde há recursos de abrigo, água e alimento próximos. O comportamento deles em relação à presença do ser humano e suas interações vai depender, entre outros fatores, das suas experiências anteriores e da sua socialização, influenciando as estratégias para o manejo dessas populações.
Os gatos ferais são aqueles que nunca tiveram contato com humanos ou que o contato foi diminuindo ao longo do tempo, apresentado medo das pessoas e sobrevivendo por conta própria. Para fins deste artigo, entende-se por “gatos de vida livre” aqueles que não possuem um tutor ou lar, que vivem em vida livre, dependendo ou não dos recursos oferecidos por humanos para a sua sobrevivência.
O manejo populacional humanitário de gatos envolve a captura, esterilização cirúrgica e devolução (CED) para o mesmo local, sendo fundamental a identificação dos animais que já foram castrados.
Existem diversos métodos disponíveis para identificação de animais, como microchipagem, tatuagens, colares e plaquetas, etc. No caso de felinos que vivem em colônias que estão sendo manejadas por meio da estratégia CED, o principal objetivo é identificar os animais que já foram capturados e esterilizados e evitar tanto o estresse e o sofrimento animal, como também gastos desnecessários com uma recaptura e anestesia. Para tanto, nestes casos o método de identificação deve seguir os seguintes pré-requisitos: ser permanente, ser visível à distância, ser de fácil execução e obviamente não causar nenhum dano ou injúria ao animal.
Infelizmente, nenhum dos métodos de identificação mencionados acima são indicados nos casos de colônias de gatos que estão sendo controladas por meio de programas CED. As tatuagens não podem ser vistas à distância e, em se tratando de gatos ferais, muitas vezes a aproximação antes da captura se torna impossível. Os colares com plaquetas de identificação, além de não serem permanentes, pois os animais podem perdê-las, são perigosas para animais de vida livre (por exemplo, animais que crescem ou engordam podem ser machucados pela coleira; animais ficarem presos a objetos ou galhos de árvores, trazendo sérios riscos à vida e à saúde dos animais).
No passado, alguns projetos chegaram a utilizar “brincos plásticos” para identificação dos animais, mas estes se mostraram ineficazes à médio e longo prazo, quase sempre caiam ou causaram infecções locais. Os microchips, apesar de seu uso ser peça fundamental para programas de manejo de populações caninas e felinas em áreas urbanas, seu uso isolado não cumpre a função primordial de identificar à distância os animais que já foram capturados e castrados daqueles que ainda não foram nos programas de CED. Nesses casos, a microchipagem deve sempre ser acompanhada de um método de identificação externo.
A remoção da ponta de uma das orelhas é o padrão global aceito para marcar ou identificar um gato de comunidade de vida livre esterilizado, sendo recomendado tanto pela American Veterinary Medical Association (AVMA) (https://www.avma.org/KB/Policies/Pages/Free-roaming-Abandoned-and-Feral-Cats.aspx ), como pela British Veterinary Association (BVA) (https://www.bva.co.uk/uploadedFiles/Content/Membership_and_benefits/Students/Guidance_notes_-_cat_neutering.pdf).
Também organizações de defesa animal, internacionais, que trabalham com o manejo de gatos em vida livre recomendam a remoção da ponta da orelha esquerda, e este padrão é amplamente utilizado. Na Universidade Federal do Paraná, a ponta da orelha direita tem sido removida para a identificação de fêmeas e a esquerda para machos.
Segundo a Resolução nº 1.027/2013 do Conselho Federal de Medicina Veterinária, são proibidos os procedimentos de caudectomia, conchectomia, cordectomia e onicectomia em animais com fins estritamente estéticos, podendo os profissionais que os realizarem responder a processos éticos-profissionais. Para fins de tratamento ou não estéticos, os mesmos podem ser realizados. Sendo assim, o corte de orelha para a identificação dos animais castrados é utilizado como importante estratégia para o manejo populacional de gatos em vida livre, inseridos em programas de saúde coletiva, sem cunho estético.
PROCEDIMENTO
O procedimento de corte da orelha é realizado com o animal sob efeito de anestesia geral, durante ou ao final do procedimento de castração, antes que o animal se recupere da anestesia. A ponta distal da orelha pode ser removida com o uso de dissecação precisa ou, se disponível, com eletrocautério ou laser. A maioria dos procedimentos é realizada com uma pinça reta e uma tesoura reta, a última é preferível a uma lâmina de bisturi, visto que ajuda na realização da hemostasia por sua ação de esmagamento.
Os materiais cirúrgicos devem ser retos para segurar que a orelha fique em linha reta, isso tem grande importância para assegurar o efeito visual e facilitar a identificação do animal a distância, instrumentais curvos podem dar a impressão de que a orelha não está cortada se vista a longa distância. A quantidade a ser removida dependerá do tamanho do animal e em geral é proporcional a um quarto da porção distal do pavilhão auricular, com aproximadamente 0,5 a 1 cm. Após o procedimento a pinça é mantida no local até a recuperação anestésica a fim de auxiliar na hemostasia.
Não é recomendada e nem necessária síntese da incisão, visto que, nessa região do pavilhão auricular há apenas pequenas ramificações da artéria e veia auricular e delgada camada de cartilagem e pele, não trazendo risco algum ao paciente.
Existem alguns projetos de CED que usam outras formas de corte como forma de marcação, como por exemplo: a marcação meia-lua na aba interna ou em forma de um pique triangular na aba exterior. Independente da forma padrão utilizada no programa é extremamente recomendada que as orelhas sejam cortadas e não chanfradas, porque está marcação pode facilmente ser confundida com lesões de lutas, especialmente em machos, ou outra lesão acidental. Além disso estas são de difícil identificação a distância o que dificulta o manejo da colônia.
A marcação padronizada e aceita internacionalmente como identificação de gatos ferais que estão esterilizados é a marcação com o corte da ponta da orelha esquerda de aproximadamente 1 cm nos gatos adultos e 0,5 cm nos gatos mais jovens, como na foto abaixo:
PRINCIPAIS VANTAGENS DO MÉTODO
- Seguro e permanente.
- Pode ser detectado à distância, sem a necessidade de um equipamento especializado.
- Não oneroso, não requer tecnologia ou uso de dispositivo.
- Não requer treinamento específico por parte do cirurgião (método de fácil execução e baixo risco cirúrgico)
- Método humanitário e sustentável, pois previne capturas e cirurgias duplicadas e desnecessárias em um mesmo animal, principalmente nas fêmeas.
QUESTÕES DE BEM-ESTAR ANIMAL
Algumas pessoas ainda enxergam este método já consagrado de identificação como uma forma de mutilação. Muitos acreditam que os animais que apresentam este tipo de marcação podem apresentar maiores dificuldades de encontrar um adotante se forem colocados em programas de adoção. Conversando com organizações e profissionais que trabalham com CED há muitos anos, tanto no exterior quanto no Brasil, as opiniões destas pessoas que lidam diariamente com programas de CED corroboram o que as associações médico-veterinárias defendem, ou seja o corte de orelha em gatos não causa nenhum sofrimento, muito pelo contrário, ele evita o sofrimento desnecessário de se capturar um gato que já foi capturado e esterilizado no passado e não dificulta o processo de adoção.
TESTEMUNHO
“Apesar da resistência de parte da sociedade e até de pessoas ligadas à Proteção Animal, os agentes de CED devem continuar praticando a marcação de orelha (ear tipping) em gatos que são devolvidos para as colônias após captura e esterilização. Essa é a maneira mais eficaz encontrada para identificarmos e separarmos, durante as operações, felinos castrados de inteiros. Sem a marcação os trabalhos de CED seriam muito mais demorados e dispendiosos. E é importante também adotar a convenção internacional do corte reto na orelha esquerda. O lado esquerdo por ser convenção, e o corte reto por ser de fácil visualização e atingir área pouco vascularizada, proporcionando cicatrização muito rápida. Além disso o corte reto protege o gato de dilacerações em brigas. (Eduardo Pedroso, agente de CED, ONG Bicho Brother – São Paulo)
Alley Cat Allies. Protocols: eartipping. Disponível em: http://4fi8v2446i0sw2rpq2a3fg51-wpengine.netdna-ssl.com/wp-content/uploads/2015/02/EartippingFactsheet.pdf
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