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Existe uma castração adequada para fazer controle de gatos de rua com método CED?

Por Eduardo Pedroso

Eduardo Pedroso para a revista Bom Criador número 16, novembro de 2021.

Conforme prometido, vamos falar sobre castração nessa edição da revista Bom Criador. Antes, porém, é preciso fazer uma observação importante, para que não tenhamos desinteligência durante e após a leitura deste texto.

Todas as informações que você vai encontrar se prestam a compreender a aplicação de uma técnica nos indivíduos de uma única espécie. Especificamente, nas fêmeas do gato (Felis catus). Dizendo melhor, o texto presente trata de castração de gatas domésticas. Esse é o tema da nossa coluna de novembro de 2021.

Vamos falar de castração de gatas de colônia. Só de gatas de colônia? Não. Os benefícios que serão descritos são aplicáveis a todas as fêmeas de gato doméstico que venham a ser submetidas à cirurgia de esterilização. O termo técnico de uma cirurgia de castração aplicada a gatas é ovariosalpingohisterectomia.   

Afinal, existe uma castração correta para o cirurgião médico veterinário empregar dentro do protocolo de CED? Sim? Não?

A resposta é sim. E o nome da técnica empregada é castração minimamente invasiva ou a sigla CMI.

Definição de CMI

Para a Dra. Fernanda Conde, médica veterinária responsável pela clínica Melhor Amigo, situada na ZN da capital paulista, “é a retirada de órgãos reprodutivos das fêmeas (ovários e útero) com a mínima incisão cirúrgica possível, o que reduz o sangramento, resultando em melhor controle de dor, melhor cicatrização e consequentemente um pós-operatório de maior sucesso”.

Para sua colega Dra. Thamires Sigarini, que comanda a clínica Sphynx, também na capital paulista, “a castração minimamente invasiva consiste em um método em que se realiza uma incisão de aproximadamente meio centímetro na barriga da gata para realização da esterilização com a técnica do gancho”. A Dra. Thamires acrescenta que essa forma cirúrgica anula o risco de evisceração no pós-operatório, o que segundo a médica “é de suma importância para os animais que são submetidos a ações de controle com método CED.”

Outra definição brilhante vem de Curitiba, da Dra. Alessandra Benedetti. A cirurgiã afirma que a CMI “é uma técnica cirúrgica com objetivo de diminuir a agressão aos tecidos, causando assim mínimo dano à integridade física do paciente”.

 A síntese das definições dadas acima pelas médicas pode ser assim expressada: é uma técnica cirúrgica feita com incisão mínima, que causa pouquíssimo desconforto e dano à integridade física da gata e que, muito importante, impede o risco de evisceração.

Foto: Dra. Thamires Sigarine

Evisceração

Em 2016, no decorrer dos jogos olímpicos do Rio de Janeiro, um caso gravíssimo de negligência médica foi observado durante a tentativa de controle de uma das colônias de gatos do Maracanã. Após a captura e encaminhamento dos animais para uma clínica na Barra, as cirurgias foram feitas da forma tradicional, ou seja, com grande abertura na barriga das gatas.

Provavelmente ocorreu falta de comunicação dentro da clínica, e o médico que fez as cirurgias não foi avisado que se tratava de uma ação de captura, esterilização e devolução. O resultado foi trágico. Várias gatas tiveram suas vísceras desentranhadas após a devolução, os pontos abriram, os órgãos ficaram expostos e muitas morreram agonizando debaixo dos containers da organização dos jogos.

Para contextualizar. O comitê olímpico reuniu profissionais para cuidar do bem-estar dos animais de rua durante os jogos. A clínica em questão havia, até aquele momento, entregado bons serviços para as equipes de controle.

A lição que fica é a seguinte: sempre e todas as vezes que um agente de controle entregar gatos para serem castrados dentro do processo de captura, esterilização e devolução, é absolutamente necessário avisar que se trata de um trabalho de CED, que a castração exigida é a CMI, e que os gatos serão devolvidos para a colônia dentro do prazo determinado pelo método, entre 12 e 18 horas após o ato cirúrgico. Avisar sempre.  Nunca deixar de comunicar. E isso mesmo que você conheça os serviços da clínica e dos médicos há décadas.

Para trabalhos de controle de colônias de gatos de vida livre com método CED, devemos utilizar:

( ) cirurgia convencional, com incisão grande na barriga da gata, uso de roupinha, medicação ministrada por uma semana e retirada de pontos. Resposta errada.

( X ) castração minimamente invasiva, com incisão pequena, aplicação de medicamentos de longa duração e sem necessidade de retirada de pontos. Resposta certa.

Aquisição da técnica

Infelizmente, e muito infelizmente, a CMI não é ensinada nas faculdades de medicina veterinária. Portanto, até o presente momento, o profissional que quiser adquirir essa técnica salutar precisa de um curso de especialização fora da academia.

Abaixo o relato do médico veterinário Pedro André de Quadros Salles, diretor da Unidade de Vigilância de Zoonoses (UVZ) de Jacupiranga, cidade do interior paulista.

“Eu trabalho com clínica e cirurgia de pequenos animais há três anos. Quando iniciei meu trabalho no UVZ municipal, já tinha ouvido falar da castração minimamente invasiva. Minha mãe e um amigo que trabalha com CED falavam das vantagens de se realizar esse tipo de cirurgia para controle populacional de gatos.

Na faculdade tinha tido contato com a técnica do gancho, mas não com castração minimamente invasiva. Daí fiz alguns cursos de técnica minimamente invasiva para começar a realizar o controle populacional de animais de rua ou abandonados. Fiz dois cursos e comecei a aplicar a técnica no meu trabalho. As vantagens de menor tempo de cirurgia e recuperação mais rápida no pós-cirúrgico me permitem fazer controle populacional de gatos na cidade.

Hoje sou sócio de uma clínica veterinária e aplico a técnica também nas cirurgias eletivas de castração.”

Foto: Dra. Thamires Sigarine

Só para gatos de colônia?

A última frase do médico Pedro André, diretor da UVZ de Jacupiranga, chama atenção. Ele aplica a CMI nos seus pacientes que não são gatos de colônia. Animais que possuem proprietários e não circulam nas ruas.

Afinal, se a técnica é superior em vantagens ao formato convencional, por que não expandir o benefício a todas as gatas indistintamente, sejam de vida livre ou indoor?

Por que não se aprende a CMI nos cursos de medicina veterinária das faculdades?

Fiz essa pergunta para a Dra. Camila Sabaudo, professora de anatomia e clínica cirúrgica de pequenos animais da graduação da Faculdade Anclivepa.

A resposta basicamente foi essa: “Ensina-se nas faculdades que cada paciente deve ser tratado de forma individual. Todas as cirurgias devem ser submetidas a anestesia inalatória e precedidas de exames. Não se abre um abdômen apenas para fazer uma castração, trata-se de uma oportunidade para examinar órgãos, fazer uma inspeção geral do animal internamente e detectar possíveis problemas e anomalias”.

A professora reconhece, entretanto, a importância dos procedimentos clínicos direcionados para o controle ético da população de gatos de vida livre que são praticados por médicos vinculados a ONGs e órgãos públicos.

Minha opinião

A visão da academia é, ainda, um tanto descolada da realidade das ruas. O não ensinamento da técnica minimamente invasiva em sala de aula gera, infelizmente, consequências negativas para a saúde pública, a conservação da fauna silvestre e o bem-estar dos animais domésticos de vida livre. Há um longo caminho a percorrer até que a medicina do coletivo abra espaço nas universidades brasileiras.

E a verdade é que sem a castração minimamente invasiva o método CED não seria funcional.

Os primórdios da CMI no Brasil

E uma vez que falamos de funcionalidade, é impossível deixar de lembrar do médico que tornou a existência do CED no Brasil uma realidade. Para dar um testemunho sobre essa figura essencial, convidei a pioneira do método no país, a presidente da ONG Confraria dos Miados e Latidos, Tatiana S. R. Cunha.

“Quando comecei a jornada na proteção animal, em 2007, o Dr. Werner Payne já era uma lenda. Graças a ele, que na década de 1990 trouxe para o Brasil a técnica de castração minimamente invasiva (o método do gancho), foi possível tanto a implementação de mutirões de castração quanto a castração pediátrica e a prática de CED.

Todas essas frentes desaguam num conceito único: controle populacional efetivo. O Dr. Werner era dono de uma visão à frente de seu tempo. Foi a isso que dedicou sua vida. Foi também fundamental na mudança de manejo dos animais no CCZ, humanizando um processo que até então era brutalizado, melhorando o bem-estar dos animais abrigados. De quebra, fez parte da primeira turma de médicos veterinários peritos forenses, em 1997.

Quando perdemos Dr. Werner em julho de 2020, um gigante deixou de caminhar sobre a Terra.”

E para completar esse relato emocionante, Tatiana lembra de algo incrível: “Ele produzia seus próprios ganchos, alguém tem noção do que seja isso?”.

Entrevista com um médico com muita experiência na CMI

Em 2017 eu tive a oportunidade de entrevistar para o jornal Olhar Animal o Dr. Walter Figueira. Recupero nessa coluna para a Bom Criador o conteúdo, que continua muito atual e merece ser colocado novamente em circulação.

Dr. Walter Figueira, o mago da Castração Minimamente Invasiva

Ele é do tipo bonachão, nunca perde o humor e ama animais. Vive rodeado de bichos retirados das ruas, especialmente gatos. Veterinário formado pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), atende diariamente em sua clínica, a Bichos e Vets, localizada na Zona Leste da cidade de São Paulo.

Há alguns anos e desenvolve trabalhos com grupos que praticam Captura, Esterilização e Devolução (CED), tornou-se referência no assunto como médico dedicado ao controle ético da população de gatos de rua.

Eduardo Pedroso: Dr. Walter Figueira, o que é Castração Minimamente Invasiva (CMI)?

Dr. Walter Figueira: É um tipo de cirurgia que infelizmente não se aprende na faculdade (risos).

Eduardo Pedroso: E por quê?

Dr. Walter Figueira: Há um descolamento da realidade das ruas no meio acadêmico. É claro que os cursos de medicina veterinária refletem isso. Não há intercâmbio entre a Proteção Animal e as universidades. A medicina do coletivo é ainda muito pouco desenvolvida.

Eduardo Pedroso: E como definir a CMI?

Dr. Walter Figueira: Se o profissional médico veterinário não procurar aprender a CMI por sua própria conta, passará o resto da vida fazendo castrações grandes e submetendo animais a pós-operatórios longos e dolorosos.

Eduardo Pedroso: Defina, por favor.

Dr. Walter Figueira: A Castração Minimamente Invasiva é a esterilização seguindo o princípio minimalista. Tudo pequeno, diminuto, enxuto e delicado. Praticar CMI significa fazer uma pequena incisão na barriga da gata. Disse gata porque estamos falando de Captura Esterilização e Devolução (CED). Castrar dessa maneira é fazer a menor ferida cirúrgica possível. Isso proporciona uma recuperação muito rápida, pouca dor e um pós-operatório bem curto. Essa é a cirurgia que me pedem os grupos de CED.

Eduardo Pedroso: Sem CMI não existe CED. Ela é parte do trabalho de controle ético de gatos de rua. É ela que permite o rápido retorno do animal para a colônia. E o retorno rápido é fundamental para a reconexão do gato ao meio onde está adaptado.

Dr. Walter Figueira: Exato. Além disso um pós-operatório curto evita a exposição do animal saudável a ambientes clínicos ou abrigos, locais sempre perigosos mesmo se tomando os devidos cuidados. E evitar estresse em gatos é muito importante. Animal de vida livre em cativeiro é complicado. Quanto mais rápido for devolvido em segurança, melhor.

Eduardo Pedroso: Verdade. E precisamos levar em consideração que gatos de colônia são em sua maioria ferais.

Dr. Walter Figueira: E a Castração Minimamente Invasiva não se aplica só aos animais envolvidos em ações de CED. Todos se beneficiam. Aqui na clínica meus novos clientes se surpreendem com a rapidez da recuperação das gatas quando comparam com as castrações feitas pelo modo convencional de outros médicos e clínicas.

Eduardo Pedroso: A CMI por apresentar essas vantagens é mais cara?

Dr. Walter Figueira: Não. Na verdade, é mais barata pois não se gasta dinheiro com remédios fazendo pós-operatórios longos. Ao final da cirurgia aplica-se uma dose de antibiótico de largo espectro e longa duração. O suficiente para o animal terminar sua recuperação na colônia.

Eduardo Pedroso: Qual a diferença entre a Técnica do Gancho e a Castração Minimamente Invasiva?

Dr. Walter Figueira: Uma é um conceito e outra é uma técnica. A Técnica do Gancho pode ser empregada por profissionais que abrem a gata em demasia, muitos pontos, pós-operatório sofrido, maneira antiquada e dolorosa. E a mesma Técnica do Gancho pode ser utilizada para a Castração Minimamente Invasiva, incisão pequena, recuperação rápida, pouca dor, tudo mais suave. O gancho é apenas um instrumento. O que interessa é o conceito minimalista de esterilização.

Eduardo Pedroso: Até quando a classe médica veterinária, a Proteção Animal e os agentes de Saúde vão continuar a fazer de conta que a população de gatos de vida livre será controlada através de mutirões?

Dr. Walter Figueira: Animais que são esterilizados em mutirões são em sua maioria domiciliados. Os animais de vida livre não são esterilizados nesse método. Sem Captura, Esterilização e Devolução não haverá controle. O mutirão cumpre outro papel. Sem CED as ruas vão continuar superpovoadas de gatos.

Eduardo Pedroso: Agora foi no alvo! Alguma mensagem final?

Dr. Walter Figueira: Que a cultura CED fique mais forte. Minha contribuição é continuar trabalhando com as ONGs e capacitar mais médicos para a CMI em minha clínica.

Eduardo Pedroso: Obrigado, mago!

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