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Esporotricose: negligência e misericórdia

Por Eduardo Pedroso

A maior vítima é a população de gatos de vida livre, que descontrolada, se infecta com maior frequência e faz crescer exponencialmente o número de casos por todo o país.

E além disso, não se pode esquecer, trata-se de uma zoonoses, e como tal, coloca a vida humana em risco.

Não há nenhuma novidade nessas informações, e mesmo o alerta da SBI (Sociedade Brasileira de Infectologia) em outubro de 2023, mostrando o avanço desenfreado da patologia, era aguardado.

Em algum momento uma instituição importante quebraria o silêncio. Coube a SBI, uma entidade civil, através do médico infectologista e professor da UFPR (Universidade Federal do Paraná), Dr. Flávio Telles, a honrada missão de chamar atenção para essa tragédia que atinge, sobretudo, os gatos de rua.

Do poder público até o presente momento nenhum pronunciamento. E é assim há anos. Talvez uma ou outra ação pontual, mas nada efetivo, nenhuma campanha partiu do Ministério da Saúde ordenando as vigilâncias sanitárias a, pelo menos, orientar a população sobre como lidar com o crescente número de casos que se espalham pelo país.

Debelar a epidemia é outra história, e isso passa pela ideia de controlar a população de gatos de rua, mas pelo menos dar norte às pessoas que tiveram contato com animais infectados…

A esporotricose atinge o ser humano.

Tenho notado que pessoas afetadas pela esporotricose tinham total desinformação, ou quase nenhuma informação, sobre a doença. Como a Dona Zuleika, arranhada por uma gata com suspeita de esporotricose em abril deste ano na cidade de Osasco, Grande São Paulo. Alias, a gata em questão, nomeada Vivi pela protetora, foi entregue para o vereador Alexandre Capriotti e ninguém sabe do paradeiro do animal.

Em Viamão, no Rio Grande o Sul, uma família inteira está afetada pela doença. No áudio que circula pelas redes sociais, uma mãe desesperada relata que suas três filhas estão doentes. Ela afirma que não conheciam a enfermidade, e que o marido teve sérias complicações de saúde, além dela mesma. Quadro agravado porque ela é autônoma e está impossibilitada de trabalhar.

Em março do corrente ano estive na DVZ (Divisão de Vigilância de Zoonoses), aqui na cidade de São Paulo, entregando uma gata com esporotricose que mordeu uma protetora, uma munícipe do Jardim da Saúde. Essa senhora e seu esposo também desconheciam a doença.

Nas dependências do orgão da Prefeitura, ouvi de um médico a seguinte frase: “A esporotricose é uma doença negligenciada”. Isso dito por um funcionário público pago para cuidar da saúde pública estragou meu dia, e me fez enxergar de uma vez por todas que estamos longe de ter as autoridades sanitárias como parceiras no combate a epidemia.

Alguém consegue imaginar normalidade ao entrar em uma oficina mecânica e ouvir do mecânico que ele não conserta direito carros, ou entrar em uma padaria e ouvir do padeiro que os pães, quando são feitos, são duros e amargos? Pois é, aquele médico quis me dizer que o sistema de saúde pública do Brasil não dá a mínima, simplesmente não liga, ou não acha importante o que está acontecendo nas ruas com os gatos e com as pessoas em suas casas e hospitais. Aquele médico contou com a minha complacência. E não a obteve.

O fato é que o Ministério da Saúde, e todo seu aparato sustentado pelos impostos cobrados da cidadania brasileira, negligenciam a esporotricose, fazem vistas grossas para a doença, ou prevaricam, como preferirem.

Aproveitando a DVZ, conto uma história do antigo CCZ (Centro de Controle de Zoonoses), para ilustrar, e demonstrar, um procedimento que julgo correto e honesto, quando lidamos com gatos de vida livre e temperamento forte.

A vida pede coragem

O escritor Guimarães Rosa tem um poema fantástico que carrego comigo para as situações difíceis. Em um dos versos ele diz que a vida quer da gente coragem. Coragem para agir, e coragem para falar sobre temas sensíveis que possam desagradar o establishment.

A história do Spock

Corria o ano de 2015 e eu prestava serviços de controle de gatos de colônia para um clube da capital paulista. Era um trabalho difícil pois se tratava de debelar um foco de esporotricose. Parte da colônia estava infectada. Um dos gatos era um macho amarelo de porte grande e temperamento muito forte, que eu apelidei de Spock. Logo após capturar, entreguei no setor de epidemiologia do CCZ de São Paulo. Tratava-se de um animal asselvajado ou feral, como comumente as protetoras se referem a esse tipo de comportamento de gato de rua.

Sete meses depois eu fui chamado para retirar o gato do orgão da Prefeitura. O Spock estava curado! Do CCZ fui direto para o clube devolver o Spock para a colônia. Eu estava feliz e com sentimento de dever cumprido. O Spock estava curado da esporotricose, castrado, vacinado contra raiva e marcado na orelha direita. Tinha dado tudo certo.

Infelizmente não. Algumas semanas depois da devolução o gato estava cheio de feridas pelo corpo. Não consegui capturar pela segunda vez o Spock. Forte, rápido, arredio, asselvajado e agora com medo de armadilha, não foi possível contê-lo dentro de algum equipamento, ele não deixou. Por duas madrugadas eu vi seus olhos brilharem no escuro da floresta. Eu implorei para o Altíssimo me permitir colocá-lo dentro de uma armadilha novamente. Mas isso não aconteceu.

O Spock teve uma morte lenta e dolorosa. Um dia ele saiu do contato visual dos funcionários do clube e eu fui avisado. Encontrei-o em estado de decomposição. Seu corpo foi destinado para a cremação. A lição amarga que ele deixou nunca foi esquecida, e desde então todo gato asselvajado que eu capturo, e que é diagnosticado com esporotricose, recebe um tratamento indolor para aliviar seu sofrimento.

O procedimento misericordioso é feito respeitando todos os padrões humanitários que se aplicam a situação limite. A eutanásia é um ato de misericórdia.

Creio que não seja necessário explicar que gatos com o comportamento agressivo do Spock não têm perfil para frequentar feiras de adoção, especialmente se tiverem um histórico de doença zoonótica.

Creio também que não seja necessário explicar que gatos com o comportamento agressivo não devem receber o castigo de viver em jaula de ONG ou abrigo.

Mas se for necessário defenderei meu ponto de vista diante de qualquer pessoa ou entidade.

Fontes: https://infectologia.org.br/2023/10/19/o-avanco-da-esporotricose-no-brasil/

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