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Ação da Ampara Animal em Fernando de Noronha estabelece recorde brasileiro de manejo de gatos com método CED

Por Eduardo Pedroso

Não se trata de uma competição. Que isso fique bem claro. Não é um recorde esportivo ou do mundo do entretenimento. O trabalho da ONG Ampara Animal realizado em Fernando de Noronha entre os dias 11 e 23 de setembro de 2019 teve como objetivo controlar de maneira ética e não letal a população de gatos de vida livre que habita a principal ilha do arquipélago, e assim defender a biodiversidade local, uma das mais ricas e variadas do planeta.

Como sabemos, o gato doméstico (Felis catus), existe em Noronha como espécie exótica e invasora e ameaça a sobrevivência de espécies nativas, como o mabuya (Trachylepis atlantica), pequeno lagarto que é o símbolo da ilha. O gato é um predador nato e com frequência atinge o conjunto de aves da região. Algumas espécies de aves são endêmicas, ou seja, só ocorrem nesse lugar do mundo.

Dados recentes do Instituto Brasileiro para Medicina da Conservação (Tríade), apontam que cerca de 1.300 gatos vivam nesse ecossistema, “uma das maiores densidades de gatos já registradas em ambientes insulares em todo o mundo.” (DA SILVEIRA, 2019)1.

O recorde pode ser estabelecido por conta da expressiva quantidade de animais que a ação deu conta de capturar, esterilizar e devolver. Vale o registro. Foram contabilizados 355 animais em nove dias de intervenção. Isso quer dizer que 355 gatos passaram pelo processo de CED, foram capturados, castrados e soltos nos mesmos locais onde foram capturados, é assim que funciona o método CED, internacionalmente respeitado e reconhecido por sua eficácia no controle de gatos de vida livre que formam colônias.

O número de esterilizações foi maior, pois a ação uniu duas modalidades de controle: CED e mutirão. A Ampara Animal produziu um filme institucional que conta cada etapa da ação, que envolveu até um censo. Mais de 900 casas foram visitadas, segundo a diretora de Marketing da Ampara, Raquel Facuri.

Esse filme está disponível em https://www.youtube.com/watch?v=1YeQihzi0yk&t=85s

CED em Fernando de Noronha

O trabalho de campo de fato começou quando, ainda em julho, a Ampara Animal possibilitou um estudo de área em Fernando de Noronha. Acompanhado da médica veterinária Dra. Alessandra Benedetti, pude conhecer e registrar os pontos nevrálgicos da ilha, como o Universo, lugar de tratamento de resíduos, e o porto, locais que concentram as duas maiores colônias de gatos da ilha.

A partir dessa primeira viagem para reconhecimento da geografia de Noronha, foi possível desenhar uma logística que envolveu a aquisição de armadilhas especiais da Fermarame e a procura de pessoas que tivessem o perfil para executar a ação, que se mostrou mais difícil e pesada do que imaginávamos.

É importante dizer que todo o trabalho de controle efetuado pela ONG aconteceu dentro dos limites da Área de Proteção Ambiental (APA), e que apesar do estudo de área prévio ter incluído a área do Parque Nacional Marinho de Fernando de Noronha, nesse local não aconteceram capturas. Fernando de Noronha é uma Unidade de Conservação (UC) dividida em Parque e APA, e é nessa que está a população humana, a parte urbanizada da ilha e portanto as colônias de gatos.

Não observei colônias dentro do Parque Nacional, e sim vestígios de indivíduos. Provavelmente os gatos que habitam o Parque tenham vida solitária, retomando hábitos ancestrais da espécie. Como sabemos a formação de colônias de gatos se dá como forma de interação e defesa diante da espécie humana. Acontece o que chamamos na biologia de simbiose ou mutualismo, no qual espécies obrigadas a ocupar o mesmo espaço encontram meios de convivência. No parque não há presença humana.

Os trabalhos de captura ocorreram quase que 24 horas por dia. Durante o dia, as voluntárias da Ampara Vivi Floripe e Míriam Alves de Paula e Bruno Teófilo Resende, voluntário de pesquisa e manejo de fauna do ICMBio, cobriam as colônias menores que eram identificadas junto às moradias, e durante a noite eu, o veterinário Ricardo Siqueira e o analista ambiental do ICMBio, Ricardo Araújo, atacávamos as colônias maiores. Evidente que as duas equipes se misturavam e cumpriam funções nos dois turnos.

Havia ainda o trabalho eventual de resgatar gatos e cães domiciliados de temperamento mais forte e transportar das casas dos moradores para os centros cirúrgicos.

Todos os gatos capturados com armadilhas tomahawk, drop trap ou rede eram transferidos para caixas de transporte e levados para os centros cirúrgicos. Alguns gatos capturados com rede foram levados diretamente, como mostra uma das cenas do filme.

Fernando de Noronha é um desafio, as condições de trabalho são muito adversas, as muitas colônias que se espalham pela ilha têm características muito diferentes. Em um dia zeramos a colônia que uma moradora monitora na extensão de sua residência, cada animal da Zaira tinha um nome e ela e suas parceiras ajudaram muito nas capturas. Já no porto o desconhecimento sobre os gatos era total, chegamos a armadilhar uma parte remota do porto e notamos que os gatos capturados eram os mesmos que havíamos capturado em dias anteriores, a colônia se deslocou para essa parte pois ficou estressada nos pontos onde atacamos. A marcação de orelha nos salvou nesse caso.

Todos os gatos que passaram pelas mãos da ONG, incluindo os esterilizados em mutirões, foram marcados segundo a convenção internacional, corte reto, orelha esquerda, entre meio e um centímetro da ponta para a base. Fernando de Noronha está cheia de gatos com marcação de orelha, significa que estão castrados.

Para ilustrar esse assunto, a conta de 355 capturas não é correta, esses foram os gatos esterilizados. Esses mesmos gatos que passaram pelo processo de CED, depois de soltos, entraram nas armadilhas novamente. É comum esse acontecimento. No Universo, o local de tratamento de resíduos da ilha, isso aconteceu bastante. Se falarmos então de quantidade de capturas, atingimos quase 500 com nossos equipamentos. É claro, o que interessa são os gatos que passaram pelo processo todo após a primeira captura, e esses montam o número de 355. Figurinha repetida não vale.

Com certeza, tanto quanto o número expressivo de capturas e esterilizações, a experiência adquirida nos dias de ação seja o bem mais valioso que a Ampara guarda dessa operação de controle de grande porte.

Não só a ONG, mas também o ICMBio e a Vigilância Sanitária de Noronha tiveram ganhos de conhecimento técnico no contato com as atividades diárias dos voluntários e profissionais que trabalharam nas atividades de CED e mutirões. Aliás, a ação não terminou, membros do ICMBio e o veterinário Ricardo Siqueira, médico ligado à Ampara que permaneceu na ilha, continuam o trabalho de controle dos gatos de vida livre e dos animais domiciliados.

Dois centros cirúrgicos

A Dra. Alessandra Benedetti coordenou a equipe de médicas veterinárias que esterilizou mais de 600 gatos e uma quantidade de cães, além de fazer atendimentos para os animais domiciliados da população.

A equipe se dividiu em dois centros cirúrgicos, um na base do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) e outro no NVA (Núcleo de Vigilância Animal), local cedido pela Administração da Ilha e que contou com a supervisão e apoio do Dr. Carlos Diógenes, gerente da Vigilância Sanitária de Fernando de Noronha.

Participaram dos trabalhos nos dois centros cirúrgicos montados pela Ampara Animal, além da Dra. Alessandra, as médicas veterinárias Bruna Luiza e Katia Chubaci, a estagiária Talita Odara e o médico veterinário Rivaldo Junior, funcionário local. Os dois centros contaram com apoio dos voluntários Paulo Gustavo e Manuel, moradores da ilha e de Nayza Fioritta, voluntária da Ampara.

As esterilizações foram adequadas aos trabalhos de controle com o método CED e portanto feitas com técnica minimamente invasiva. Todos os gatos da ilha que foram esterilizados pela equipe médica foram marcados na orelha esquerda, seguindo a convenção internacional, como dito acima.

Taxa de ataque e continuação do trabalho

Correspondeu a 50% do total da população de gatos estimada pelo Instituto Brasileiro para Medicina da Conservação (Tríade), que divulgou contagem de 1.300 indivíduos em fevereiro do presente ano (DA SILVEIRA, 2019).

O desejável seria alcançar um percentual de 70%. Esse percentual faria atingir em um ou dois anos, pensando sempre na continuação sem interrupção do trabalho de controle, um cenário de estabilização e declínio da população de gatos da ilha.

Entretanto as adversidades foram grandes e o desconhecimento prático de uma ação de grande porte como essa só foi superado plenamente no terceiro dia de atividades. Fato normal. Nas próximas ações todo o conjunto de conhecimentos será empregado logo no primeiro dia. O pioneirismo desse trabalho de controle ético de gatos de vida livre não será esquecido, ele é, sem dúvida, uma bela página escrita na história da Proteção Animal e preservação da biodiversidade do Brasil. A direção da Ampara Animal reconhece que esse foi um projeto-piloto e que pode ser replicado no local e em outras Unidades de Conservação do país.

A afirmação de Juliana Camargo, presidente da Ampara Animal, de que “vamos deixar um legado para a população de Fernando de Noronha” está muito acertada. Um legado técnico e conceitual, que deve criar raízes na rotina dos profissionais e voluntários que lutam pela preservação das espécies nativas e pelo bem-estar e controle de todos os animais da ilha.

Isso tem se concretizado, pois quase todos dos dias chegam de Noronha notícias e registros de novas capturas para controle ético de gatos de vida livre com o método CED.

Nota

DA SILVEIRA, Evanildo. “Gatos voltam à vida selvagem e ameaçam espécies nativas de Fernando de Noronha”. BBC News Brasil, 27 fev, 2019. Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-47343878 

Por Eduardo Pedroso, especial para o Olhar Animal

Fonte: Olhar Animal

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